DONA MARIA

Quando idealizei um espaço no site para compartilhar meus pensamentos e histórias que vivencio no trabalho, este texto, logo ganhou forma mentalmente. Dona Maria, foi uma das primeiras pessoas que atendi ainda como aluno na graduação. Era começo do terceiro ano, dia de atendimento na clinica da universidade, sala de espera lotada. As fichas sendo distribuídas aleatoriamente pelos professores, e eu recebi uma com nome de Maria.

Ao chamar a paciente, veio uma senhora de no máximo 1.60, magra, com 61 anos, aparentando mais idade. Respondeu ao questionário de saúde geral sempre falando pouco e baixo. Apesar de tentar disfarçar, conseguia sentir um desconforto da mesma em estar ali. Foi quando perguntei o que a motivou nos procurar, ela cobriu o rosto com as duas mãos e começou a chorar. Então, depois de tranquiliza-la, descortinou o que estava por trás das lágrimas e do comportamento comedido. Durante 42 anos Maria foi agredida fisicamente pelo parceiro, que havia falecido há pouco tempo. Como relatou “para cada surra, um dente quebrado pra sempre”. Buscava ali muitos tratamentos, mas principalmente repor os dentes. Acreditava que assim teria forças para continuar, reconstruir o amor próprio, reencontrar a moça que adorava sorrir antes de casar. Recuperar gestos simples como morder uma maçã, direito perdido à força. E por fim, se recolocar no mercado de trabalho, pois mesmo como costureira, segundo ela, com todos os dentes quebrados nunca conseguia emprego. A falta dos dentes contribuía para a questão social que vivia.

Naquele momento compreendi o papel que a odontologia poderia exercer na vida de alguém. Aquela senhora me mostrou muito mais que a boca, mostrou o mais profundo de sua alma e, se eu ficasse no raso jamais conseguiria ajuda-lá. Esta paciente foi definitivamente um divisor de águas na minha formação. Precisei me preparar muito, buscar múltiplos conhecimentos para tratar dela. O equilíbrio até onde posso me envolver emocionalmente com os casos, é um exercício diário da profissão.

Pouco antes de me formar consegui entregar as duas próteses para Dona Maria. Próteses dentárias com viés de autoestima, qualidade de vida e acima de tudo dignidade. Dali pra frente muitas outras Donas Marias já sentaram na minha cadeira odontológica, cada uma com sua jornada, ímpar e singular. Estar qualificado cientifica e humanamente, é o papel da minha personagem dentro dessas grandes histórias.

PS: Dona Maria já leu.